Lei \u00e9 bem-vinda sim, mas ainda h\u00e1 uma longa batalha pela frente<\/p>\n
No dia 03 de janeiro de 2019, foi publicada a Lei n\u00ba 13.793\/19, que teve como objetivo \u201cassegurar a advogados o exame e a obten\u00e7\u00e3o de c\u00f3pias de atos e documentos de processos e de procedimentos eletr\u00f4nicos<\/i>.\u201d A legisla\u00e7\u00e3o, para tanto, alterou dispositivos do Estatuto da Advocacia, da Lei do Processo Eletr\u00f4nico e do C\u00f3digo de Processo Civil.<\/p>\n
\u00c9 bem triste ver que precisamos comemorar uma legisla\u00e7\u00e3o com esta reda\u00e7\u00e3o.\u00a0A nova legisla\u00e7\u00e3o diz o \u00f3bvio: ela repete o que a Constitui\u00e7\u00e3o da Rep\u00fablica, o Estatuto da Advocacia e o CPC j\u00e1 previam. Especificamente, no caso do CPC, em refer\u00eancia ao inciso I do artigo 107 que autoriza o advogado a \u201cexaminar, em cart\u00f3rio de f\u00f3rum e secretaria de tribunal, mesmo sem procura\u00e7\u00e3o, autos de qualquer processo, independentemente da fase de tramita\u00e7\u00e3o, assegurados a obten\u00e7\u00e3o de c\u00f3pias e o registro de anota\u00e7\u00f5es<\/i>\u201c, a lei incluiu um par\u00e1grafo para estender o dispositivo, pasmem, aos processos eletr\u00f4nico \u2013 como se isso fosse necess\u00e1rio.<\/p>\n
Mas \u00e9 a\u00ed que mora o diabo. Para quem n\u00e3o est\u00e1 familiarizado com a pol\u00eamica, \u00e9 bom trazer aqui alguns detalhes sucintos desta novela que come\u00e7ou com o surgimento do processo eletr\u00f4nico e a contrata\u00e7\u00e3o de algumas plataformas pelos Tribunais brasileiros que limitavam o acesso dos autos eletr\u00f4nicos a advogados \u201ccadastrados\u201d no sistema como representantes de partes ou terceiros interessados.<\/p>\n
Nesta esteira, a Resolu\u00e7\u00e3o n\u00ba 121\/2010 do Conselho Nacional de Justi\u00e7a limitou a publicidade dos autos a (i) n\u00famero, classe e assuntos do processo; (ii) nome das partes e de seus advogados, (iii) movimenta\u00e7\u00e3o processual, (iv) inteiro teor das decis\u00f5es, senten\u00e7as, votos e ac\u00f3rd\u00e3os. Depois disso, tratando a quest\u00e3o de forma franca, o Conselho desceu ladeira abaixo com a edi\u00e7\u00e3o de outras resolu\u00e7\u00f5es a repeito. Destacam-se a Resolu\u00e7\u00e3o n\u00ba 185\/2013, que instituiu o pol\u00eamico Processo Judicial Eletr\u00f4nico (PJe), trazendo a limita\u00e7\u00e3o de que os usu\u00e1rios ter\u00e3o acesso \u00e0s funcionalidades do PJe de acordo com o perfil que lhes for atribu\u00eddo no sistema e em raz\u00e3o da natureza de sua rela\u00e7\u00e3o jur\u00eddico-processual, e a Resolu\u00e7\u00e3o n\u00ba 215\/2015, que regulamentou a Lei de Acesso \u00e0 Informa\u00e7\u00e3o, dando azo a prote\u00e7\u00e3o da intimidade e da privacidade dos dados pessoais contidos nos autos processuais.<\/p>\n
Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 Resolu\u00e7\u00e3o n\u00ba 185\/2013, entendemos que h\u00e1, antes de qualquer coisa, um \u00f3bice puramente t\u00e9cnico no sistema que foi usado para limitar um direito constitucional e de classe. Coisas da tecnologia e da inova\u00e7\u00e3o, que normalmente geram m\u00faltiplos benef\u00edcios, mas quebram alguns ovos no in\u00edcio. J\u00e1 a Resolu\u00e7\u00e3o n\u00ba 215\/2015 trabalha com o conceito de dados pessoais, pretendendo limitar o acesso com base na fr\u00e1gil constata\u00e7\u00e3o de que a consulta processual na \u00edntegra violaria a intimidade e a privacidade de eventos pessoas naturais que estivessem em contenda. Transforma-se a exce\u00e7\u00e3o na regra. Nada mais equivocado.<\/p>\n
Os dados pessoais, porventura dispon\u00edveis em processos judiciais, s\u00e3o dados tornados manifestamente p\u00fablicos, na forma do art. 7\u00ba, \u00a7 4\u00ba, da Lei Geral de Prote\u00e7\u00e3o de Dados, cuja\u00a0vacatio legis\u00a0<\/i>finda-se em agosto de 2020. Embora muitos dispositivos da legisla\u00e7\u00e3o esperem uma regulamenta\u00e7\u00e3o por parte da Autoridade Nacional de Prote\u00e7\u00e3o de Dados, rec\u00e9m criada pela Medida Provis\u00f3ria n\u00ba 869\/18, n\u00e3o h\u00e1 outra leitura poss\u00edvel: dados pessoais em processos judiciais s\u00e3o dados p\u00fablicos. Se houver risco de dano ou dano \u00e0 intimidade e a privacidade, basta que a parte requeira ao ju\u00edzo a decreta\u00e7\u00e3o do segredo de justi\u00e7a, tal como autorizado pelo CPC.<\/p>\n
Bem posta a quest\u00e3o e superada, finalmente, essa incoer\u00eancia legislativa, \u00e9 interessante discutir o ponto \u00e0 luz da (a) melhora da efici\u00eancia dos sistemas judici\u00e1rio e do (b) acesso \u00e0 justi\u00e7a com a abertura dos dados. V\u00ea-se que a lei ainda limita o acesso aos advogados, excluindo o restante da popula\u00e7\u00e3o como se houvesse qualquer ganho para o bem-estar social nisso, quando, na verdade, o que ocorre \u00e9 exatamente o oposto. Por que os autos dos processos eletr\u00f4nicos n\u00e3o podem estar dispon\u00edveis para toda a sociedade tal como os autos f\u00edsicos?<\/p>\n
\u00c9 f\u00e1cil provar que a disponibiliza\u00e7\u00e3o dos dados aumenta o bem-estar social. Veja-se, por exemplo, o desenvolvimento da \u201cjurimetria\u201d, que consiste na utiliza\u00e7\u00e3o de modelos estat\u00edsticos no Direito para an\u00e1lise de processos e decis\u00f5es judiciais, identificando padr\u00f5es e prevendo comportamentos. A t\u00e9cnica \u00e9 capaz de elevar substancialmente o n\u00famero de acordos, gerando sugest\u00f5es de ofertas \u00f3timas, com grandes chances de concord\u00e2ncia pelos litigantes. Tem potencial para evitar o ajuizamento de a\u00e7\u00f5es judiciais ao diminuir as assimetrias informacionais entre as partes, calcular as chances de sucesso e o valor esperado da a\u00e7\u00e3o. Por fim, ela exp\u00f5e o comportamento judicial (accountability<\/i>\u00a0jur\u00eddico-decisional), identificando quebras de padr\u00e3o e gerando incentivos para que ju\u00edzes respeitem precedentes e mantenham a coer\u00eancia de suas decis\u00f5es.<\/p>\n
Como toda estat\u00edstica, a jurimetria depende de dados. Embutida em plataformas que usam intelig\u00eancia artificial, ela depende de muitos dados (big data). Considerando que o Brasil possui, de longe a maior massa de processos do mundo, temos a oportunidade \u00fanica de transformar nosso maior custo (100 milh\u00f5es de processos, que consomem 1,3% do PIB, segundo relat\u00f3rio do CNJ), no maior \u201cbig data jur\u00eddico\u201d do mundo, um ativo sensacional.<\/p>\n
Exercida em sua plenitude, a jurimetria ajudar\u00e1 a calcular a efici\u00eancia e a efic\u00e1cia de pol\u00edticas p\u00fablicas, leis e atos que sejam discutidos no \u00e2mbito do Poder Judici\u00e1rio. \u00c9 essa, inclusive, a\u00a0raison d\u2019\u00eatre\u00a0<\/i>da Lei de Introdu\u00e7\u00e3o \u00e0s Normas do Direito Brasileira, recentemente alterada pela Lei n\u00ba 13.655\/2018 para promover o consequencialismo, a seguran\u00e7a jur\u00eddica e o realismo nas decis\u00f5es judiciais e administrativas.<\/p>\n
Do ponto de vista do acesso \u00e0 justi\u00e7a, \u00e9 importante que se pense na abertura dos dados do Poder Judici\u00e1rio de forma ampla para permitir o c\u00e1lculo do custo-benef\u00edcio da realiza\u00e7\u00e3o de acordos que evitem o ajuizamento de a\u00e7\u00f5es, promovendo-se a solu\u00e7\u00e3o de conflitos a baixo custo e de modo satisfat\u00f3rio fora do Poder Judici\u00e1rio. \u00c9 preciso lembrar que \u201cacesso \u00e0 justi\u00e7a\u201d n\u00e3o depende necessariamente de acesso \u00e0 \u201cJusti\u00e7a\u201d1<\/a><\/sup>\u00a0(com \u201cJ\u201d mai\u00fasculo, ou seja, acesso ao Poder Judici\u00e1rio).2<\/a><\/sup>,<\/p>\n Al\u00e9m disso, fechando-se os dados, cria-se uma barreira artificial entre o jurisdicionado e a justi\u00e7a, mas as portas das institui\u00e7\u00f5es n\u00e3o podem estar fechadas para a sociedade. O acesso \u00e0 justi\u00e7a tamb\u00e9m envolve\u00a0o amplo acesso da popula\u00e7\u00e3o \u00e0 informa\u00e7\u00e3o jur\u00eddica. O acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o, o qual pode ser visto como decorrente do acesso \u00e0 justi\u00e7a, exige que o sistema jur\u00eddico seja de f\u00e1cil navega\u00e7\u00e3o3<\/a><\/sup>; a assimetria de informa\u00e7\u00e3o jur\u00eddica \u00e9 a ant\u00edtese do ideal do acesso \u00e0 justi\u00e7a. A internet \u00e9 uma incr\u00edvel via de acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o, mas n\u00e3o se pode permitir que mais pessoas tenham acesso \u00e0 internet do que \u00e0 justi\u00e7a4<\/a><\/sup>, como ocorre nos dias de hoje. \u00c9 preciso aproveitar a oportunidade e suprir esse \u201cgap\u201d.<\/p>\n O advento da tecnologia e da internet escancarou o fato de que a Justi\u00e7a n\u00e3o \u00e9 um local (o \u201cf\u00f3rum\u201d), mas, sim, um servi\u00e7o. Para que esse servi\u00e7o tenha qualidade e seja acess\u00edvel, \u00e9 premente que a comunidade tenha acesso a essa incr\u00edvel massa de dados gerada como subproduto da litig\u00e2ncia desenfreada que caracterizou o Brasil at\u00e9 ent\u00e3o. Abrir m\u00e3o disso \u00e9 como deitar sobre uma montanha de lixo e n\u00e3o aproveitar os combust\u00edveis que dele emanam. Nada mais irracional.<\/p>\n A Lei \u00e9 bem-vinda sim, mas, como visto, ainda h\u00e1 uma longa batalha pela frente.<\/p>\n \u2014\u2014\u2014\u2014\u2014\u2014\u2014\u2014\u2014\u2014\u2014-<\/p>\n 1<\/a>\u0002<\/sup>\u00a0WOLKART, Erik.\u00a0<\/span>An\u00e1lise Econ\u00f4mica do Processo Civil. Como a Economia, o Direito e a Psicologia podem vencer a \u201cTrag\u00e9dia da Justi\u00e7a\u201d.\u00a0<\/i><\/span>Ed. Revista dos Tribunais, no pr\u00ealo.<\/span><\/p>\n<\/div>\n 2<\/a>\u0002<\/sup>\u00a0KATSH, Ethan; RABINOVICH-EINY, Orna.\u00a0<\/span>Digital Justice: technology and the internet of disputes<\/u><\/i><\/span>. Oxford University Press: Nova York, 2017, p. 46-47.<\/span><\/p>\n<\/div>\n